=Conversas de Bar=

Assuntos despolarizados, desconexos, filosofias sem muito fundamento (ou com fundamentos, caso você tenha noção do que diz), minhas crônicas, crônicas de outros, poemas meus e de outros, desabafos, sugestões, crítícas, histórias de trem, do trólebus, do dia-a-dia ou puramente conversa de bar... Puxe uma cadeira e aprochegue-se!

quinta-feira, outubro 02, 2008

O dia que quebrou meu coração

Datas, horários, informações diversas. Nosso arquivo deve ser imenso dentro da cabeça, tanta coisa a gente guarda lá.
Se for um arquivo organizado, com pastas nomeadas e tudo mais, deve haver uma área específica para sensações também. O creme hidratante que minha mãe usava quando eu era pequena, perfume do meu pai, o gosto da batatinha frita da minha avó, frio na barriga que senti a primeira vez na montanha russa... Não são números, nem imagens, são sensações. Muito mais complicado de se explicar.
E contando com tudo isso, ainda sempre há espaço em disco para mais uma coisinha... aperta um pouquinho aqui, ajeita esse outro aqui e assim vai.
Foi pensando nisso tudo que me dei conta. Me dei conta que sempre fui boa para guardar datas. Telefones eu já fui muito melhor, hoje em dia essa função anda meio falha devido à facilidade de ter tudo gravado na agenda do celular.
Mas parei pra pensar a fundo nas datas.
E me lembrei. Lembrei do dia em que eu o conheci.
Lembro do dia, local, horário. Lembro da calça e da jaqueta jeans. Do boné. Estava um dia fresco e ele estava saindo de um resfriado, por isso nem quis compartilhar a cerveja.
Me lembro da primeira piada que fez comigo. A primeira de muitas outras que viriam, a marca registrada de nosso relacionamento.
Lembro do dia do primeiro beijo. A noite em que eu fui informada que namorávamos. Lembro da camisa branca que ele usava com uma camiseta por baixo. "Gosto de usar Hering por baixo da camisa" foi o que ele disse. (Hoje me pergunto se ele falava da camiseta ou da cueca, quando se referiu à Hering.) Estranho que, com o tempo, não o vi mais usando camiseta por baixo da camisa...
Lembro da primeira vez em que o vi comendo beirute, e então percebi como ele gostava disso.
Lembro do dia da viagem, da ida ao aquário, da alegria por ter comprado peixes, da primeira (e penúltima) vez em que me levou para andar de moto. Me lembro de quando pegamos no sono, no carro, enquanto esperávamos seus amigos chegar no bar. Estava garoando, frio. "Hum, essa chuvinha é boa pra dormir!" e no instante seguinte já estava cochilando.
Lembro do brilho de seus olhos quando sorri. Lembro também de como suas sombrancelhas se fecham quando está nervoso. Lembro dos três pontinhos que tem no polegar, que mais parecem três pêlos encravados. Lembro da pinta na coxa e do aparelho nos dentes. Lembro do pé de seu cabelo, que eu sempre achava um falha e sempre prometia que ainda iria arrumar pra ele...
Lembro da cara que fez quando me viu a primeira vez com esmalte vermelho.
Lembro da última vez que tomamos açaí e que ficou impressionado quando percebeu que eu já havia tomado tudo.
Lembro de quando conheci seus pais. Lembro também do aniversário deles.

Lembro da sua maneira de passar manteiga no bolo fresquinho. Lembro de seu hálito sempre fresco e como torcia o nariz quando sentia cheiro de cigarro no meu cabelo. E eu ainda me defendia, mesmo ele sabendo que eu não fumava.
Lembro da maneira que tentou disfarçar o seu desconforto com baratas, tentando não me assustar, mesmo sabendo que tinha uma embaixo do rack da sua sala.
Lembro dele. De todos os seus diferentes sorrisos. De suas diferentes feições. De seu cheiro, seu gosto, sua fala. Lembro.
Lembro do dia em que nos conhecemos, que nos beijamos, que começamos o namoro, que conheci seus pais, seus amigos.
Todas essas datas e momentos me marcaram. Todos. Todos esses instantes ficaram registrados em meus arquivos. Registrados, carimbados e arquivados, disponíveis para consulta.
Porém, inversamente à tudo isso, não me lembro do dia em que partiu meu coração.
Sei que aconteceu, porque tenho registrado ainda agora a sensação de tortura, abandono, martírio que me causou. Ainda agora vejo os pedacinhos espalhados pelo chão. Contudo, não consigo me lembrar quando isso ocorreu, ou como, ou porquê. Como. Como?!
Engraçado que... a única data que não me lembro, é a que mais me arrasou.
Como se tornasse um borrão que se expandiu e manchou todas as outras datas. Corrompeu todos os meus arquivos....
Acho que essas datas que não conseguimos nos lembrar se autoeliminam de nossa memória na tentativa (vã tentativa) de fazer de conta que nada aconteceu...


Aline Gobeti
02/10/2008

1 Comments:

Blogger Lívia said...

Corações quebrados podem derivar das mais diversas causas. Dependendo do caso, você pode não se quebrar por ter sido um processo, não um fato isolado.
Mas que a gente esquece pra se proteger, ah, esquece. Ou pelo menos tenta. Mas como você disse, as sensações ficam sempre ali.


~ imaginaryworld.blogger.com.br

9:44 PM  

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