=Conversas de Bar=

Assuntos despolarizados, desconexos, filosofias sem muito fundamento (ou com fundamentos, caso você tenha noção do que diz), minhas crônicas, crônicas de outros, poemas meus e de outros, desabafos, sugestões, crítícas, histórias de trem, do trólebus, do dia-a-dia ou puramente conversa de bar... Puxe uma cadeira e aprochegue-se!

sexta-feira, outubro 31, 2008

Vampiros

"Eu não acredito em gnomos ou duendes, mas vampiros existem. Fique ligado, eles podem estar numa sala de bate-papo virtual, no balcão de um bar, no estacionamento de um shopping. Vampiros e vampiras aproximam-se com uma conversa fiada, pedem seu telefone, ligam no outro dia, convidam para um cinema. Quando você menos espera, está entregando a eles seu rico pescocinho e mais. Este "mais" você vai acabar descobrindo o que é com o tempo.Vampiros tratam você muito bem, têm muita cultura, presença de espírito e conhecimento da vida. Você fica certo que conheceu uma pessoa especial. Custa a se dar conta de que eles são vampiros, parecem gente. Até que começam a sugar você. Sugam todinho o seu amor, sugam sua confiança, sugam sua tolerância, sugam sua fé, sugam seu tempo, sugam suas ilusões. Vampiros deixam você murchinha, chupam até a última gota. Um belo dia você descobre que nunca recebeu nada em troca, que amou pelos dois, que foi sempre um ombro amigo, que sempre esteve à disposição, e sofreu tão solitariamente que hoje se encontra aí, mais carniça do que carne.Esta é uma historinha de terror que se repete ano após ano, por séculos. Relações vampirescas: o morcegão surge com uma carinha de fome e cansaço, como se não tivesse dormido a noite toda, e você se oferece para uma conversa, um abraço, uma força. Aí ele se revitaliza e bate as asinhas. Acontece em São Paulo, Manaus, Recife, Florianópolis, em todo lugar, não só na Transilvânia. E ocorre também entre amigos, entre colegas de trabalho, entre familiares, não só nas relações de amor.Doe sangue para hospitais. Dê seu sangue por um projeto de vida, por um sonho. Mas não doe para aqueles que sempre, sempre, sempre vão lhe pedir mais e lhe retribuir jamais."

(Martha Medeiros)

quinta-feira, outubro 02, 2008

O dia que quebrou meu coração

Datas, horários, informações diversas. Nosso arquivo deve ser imenso dentro da cabeça, tanta coisa a gente guarda lá.
Se for um arquivo organizado, com pastas nomeadas e tudo mais, deve haver uma área específica para sensações também. O creme hidratante que minha mãe usava quando eu era pequena, perfume do meu pai, o gosto da batatinha frita da minha avó, frio na barriga que senti a primeira vez na montanha russa... Não são números, nem imagens, são sensações. Muito mais complicado de se explicar.
E contando com tudo isso, ainda sempre há espaço em disco para mais uma coisinha... aperta um pouquinho aqui, ajeita esse outro aqui e assim vai.
Foi pensando nisso tudo que me dei conta. Me dei conta que sempre fui boa para guardar datas. Telefones eu já fui muito melhor, hoje em dia essa função anda meio falha devido à facilidade de ter tudo gravado na agenda do celular.
Mas parei pra pensar a fundo nas datas.
E me lembrei. Lembrei do dia em que eu o conheci.
Lembro do dia, local, horário. Lembro da calça e da jaqueta jeans. Do boné. Estava um dia fresco e ele estava saindo de um resfriado, por isso nem quis compartilhar a cerveja.
Me lembro da primeira piada que fez comigo. A primeira de muitas outras que viriam, a marca registrada de nosso relacionamento.
Lembro do dia do primeiro beijo. A noite em que eu fui informada que namorávamos. Lembro da camisa branca que ele usava com uma camiseta por baixo. "Gosto de usar Hering por baixo da camisa" foi o que ele disse. (Hoje me pergunto se ele falava da camiseta ou da cueca, quando se referiu à Hering.) Estranho que, com o tempo, não o vi mais usando camiseta por baixo da camisa...
Lembro da primeira vez em que o vi comendo beirute, e então percebi como ele gostava disso.
Lembro do dia da viagem, da ida ao aquário, da alegria por ter comprado peixes, da primeira (e penúltima) vez em que me levou para andar de moto. Me lembro de quando pegamos no sono, no carro, enquanto esperávamos seus amigos chegar no bar. Estava garoando, frio. "Hum, essa chuvinha é boa pra dormir!" e no instante seguinte já estava cochilando.
Lembro do brilho de seus olhos quando sorri. Lembro também de como suas sombrancelhas se fecham quando está nervoso. Lembro dos três pontinhos que tem no polegar, que mais parecem três pêlos encravados. Lembro da pinta na coxa e do aparelho nos dentes. Lembro do pé de seu cabelo, que eu sempre achava um falha e sempre prometia que ainda iria arrumar pra ele...
Lembro da cara que fez quando me viu a primeira vez com esmalte vermelho.
Lembro da última vez que tomamos açaí e que ficou impressionado quando percebeu que eu já havia tomado tudo.
Lembro de quando conheci seus pais. Lembro também do aniversário deles.

Lembro da sua maneira de passar manteiga no bolo fresquinho. Lembro de seu hálito sempre fresco e como torcia o nariz quando sentia cheiro de cigarro no meu cabelo. E eu ainda me defendia, mesmo ele sabendo que eu não fumava.
Lembro da maneira que tentou disfarçar o seu desconforto com baratas, tentando não me assustar, mesmo sabendo que tinha uma embaixo do rack da sua sala.
Lembro dele. De todos os seus diferentes sorrisos. De suas diferentes feições. De seu cheiro, seu gosto, sua fala. Lembro.
Lembro do dia em que nos conhecemos, que nos beijamos, que começamos o namoro, que conheci seus pais, seus amigos.
Todas essas datas e momentos me marcaram. Todos. Todos esses instantes ficaram registrados em meus arquivos. Registrados, carimbados e arquivados, disponíveis para consulta.
Porém, inversamente à tudo isso, não me lembro do dia em que partiu meu coração.
Sei que aconteceu, porque tenho registrado ainda agora a sensação de tortura, abandono, martírio que me causou. Ainda agora vejo os pedacinhos espalhados pelo chão. Contudo, não consigo me lembrar quando isso ocorreu, ou como, ou porquê. Como. Como?!
Engraçado que... a única data que não me lembro, é a que mais me arrasou.
Como se tornasse um borrão que se expandiu e manchou todas as outras datas. Corrompeu todos os meus arquivos....
Acho que essas datas que não conseguimos nos lembrar se autoeliminam de nossa memória na tentativa (vã tentativa) de fazer de conta que nada aconteceu...


Aline Gobeti
02/10/2008